quinta-feira, 14 de maio de 2015

Inspiração*

A inspiração não falha. A inspiração vem na hora errada por motivos mesquinhos, a inspiração reatroage doida e tonta, aos trancos e barrancos, querendo beijos, mãos espalmadas, solidões, tristezas, dores, textos e palavras. Maldição que acompanha, cantilena que cala e depois reinicia sem que com isso já não se contasse, é certa e pouco suave, machuca e danifica. Corta coisas macias que não são feitas para serem cortadas rindo alto e absurda das minhas pequenas fragilidades, minha humanidade incerta e tateante. A inspiração às vezes vem assim, solta e lúbrica, violenta, buscando o estupro dos meus 11 anos de que me esqueço com dificuldade, apontando sutilezas toscas que gostaria de esquecer, marcando um compasso tétrico que não anda e nem pára, me fazendo escrever textos impublicáveis que ficarão para sempre guardados em meus cadernos.

Tenho medos. Ela me coloca diante deles. Me faz esticar o braço de olhos fechados e já posso sentir na ponta dos dedos a textura do inseto, as pilosidades que me horrorizam. Sinto as patas que me sobem pelas pernas, sinto o nojo e a sujeira que já não sei se sou inseto ou se sou eu mesma. . . Quebro concordâncias. Morrem unanimidades. Ocasos imperfeitos ofuscam os meus olhos tingindo a cidade de um vermelho que traz em si toda a essência do sangue, órgãos destroçados, coisas escondidas, falências. E a merda consiste em continuar seguindo em frente. Porque a gente é legal e sempre segue em frente. Sessões e sessões de análise. Isolamentos desconhecidos irresolvíveis. Conhecer os meus próprios sintomas e pode falar de outras posições que não aquela antiga, tão objetificada. Serve para seguir vivendo. Serve para escrever estas linhas. Serve para a angústia da invasão dessas palavras. Pra vomitar alguma coisa que eu não sabia que eu tinha.

Um atrito incômodo, a inspiração. Me faz ler livros, deixar de ouvir música, sofrer miseravelmente, a inspiração. E viva-se com esse ruído sem enlouquecer, quem souber fazer melhor! Mandemos à puta que o pariu qualquer chance de equilíbrio certo, de proteção: sejamos francas! Tem gente que nasceu pra ser ferida aberta, por que não!? E de xingamento machista em xingamento machista a gente funda uma cultura inteira em que nossas estruturas diminutas e concentradas de prazer estarão sempre expostas nos sujeitando a pontadas dolorosas, convulsões de delícia e dor intensas, criações maravilhosas que nos submetem e nos causam dor. Vou escrever umas linhas tortas. Vou me envolver em poeira de estrelas. Deitar o corpo num travesseiro plano e firme e sentir o desmaio que vem chegando, que vai trazer a náusea e a enxaqueca já tão familiares. Não há esconderijo possível. Não há lugar seguro. Não se foge de quem se é.

A inspiração bate na porta, a inspiração bate na aorta, torta como um pastiche decaído. "Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino. Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã."**

*Esse é um texto ficcional
**Do poema O amor bate na aorta, de Carlos Drummond de Andrade.

sábado, 4 de abril de 2015

A Falência

Como um projétil, me feres. Com cuidado e atenção, me feres. Com desvelo, com apreço, com raiva, com requintes de carinho e discreta alegria altiva, me feres. Em cada olhar que ninguém viu, em cada beijo que ainda não beijei, em cada toque que não houve, há uma felicidade guardada, um desprezo reservado.
 
°
 
Me lembro de quando fomos viajar de trem, da sua raiva mal disfarçada ao me ver feliz. O seu pequeno ódio imenso do meu jeito de me inclinar em direção à janela, de ajeitar os cabelos atrás da orelha, de estar alegre. Me elogiava e me depreciava ao mesmo tempo, entre divertido e irritado. Me dava um beijo enojado do meu jeito ingênuo de sorrir e abria a boca em dentes branquíssimos dizendo que eu era linda, acariciando meus cabelos.
 
Então, o casal jovem entrou em nossa cabine. Sentaram-se cheios de risinhos e pequenos gracejos que nos pareceram ridículos. Eu entendia tudo... Me faziam recordar aquela época em que você não segurava a minha mão nem dizia que me amava, mas me olhava com olhos compridos como os de um bicho de estimação, como se vivesse a se espreguiçar sentado em poltronas de trem, como se seu uniforme para a vida fosse uma bermuda de tecido leve e uma camiseta branca com cheiro de amaciante em dia de sol. Eu quis calar aquela mulher que cruzava as pernas arrematadas em uma sandália alaranjada. Eu quis assassinar aquele homem novo e suas roupas despretensiosas, aniquilando assim toda a sua bondade, a sua gentileza que soava à condescendência e pena, a sua própria existência. E foi por isso que te beijei um beijo infeliz e mau: estava tão melancólica que a minha própria tristeza me fazia ser cruel.
 
Triste e angustiada, tentei encontrar beleza na paisagem que se estendia para além da janela. Por milagre, encontrei ainda olhos para ver um facho de luz que descia por entre nuvens brancas e espessas iluminando as montanhas geladas e solitárias. Já era alguma coisa. Eu ainda tinha em mim um facho de luz que descia por entre nuvens brancas e espessas iluminando as montanhas geladas e solitárias...! Há quem não tenha sequer uma flor, um eclipse, um ballet, um beijo. Há quem tenha se tornado tão amargo a ponto de não olhar pela janela, de não desesperar-se mais diante de uma angústia extrema, de não ver uma beleza trágica no sofrimento. O pior desespero é àquele ao qual nos acostumamos, mesmo sem anestesia. Vemos a violência correr ao nosso encontro e a esperamos, obedientes.
 
- O que você tanto olha?, você me perguntou. - Aquelas montanhas iluminadas. - Ah, tá., respondeu com desdém e raiva da minha capacidade de ainda olhar montanhas e buscar sentido nas coisas. Abrindo uma garrafa de água mineral, me ofereceu um gole como quem não oferece nada. Bebi do líquido puro como quem engole um veneno. Guardou a garrafa na bolsa, porque sabia que isso me irritava. 
 
Ao chegarmos à cidadezinha charmosa do condado, fomos direto ao hotel. Entramos no quarto, tiramos nossas roupas, tomamos um banho e transamos. Em meio ao sexo, em um momento aleatório, você me deu um tapa. Eu pensei assim, eu pensei pra mim "Agora eu vou embora. Dessa vez eu vou!". Mas nunca fui. Tivemos dois filhos, trabalhamos, envelhecemos. Eu lavei roupas em máquina de lavar, fiz terrines para receber casais de amigos, aprendi a falar francês, fui madrinha de casamento da Clarice, levei os nossos carros para a revisão, participei de festas de fim de ano na empresa, tricotei gorros de lã que ninguém usou, montei álbuns de fotografia, olhei muitas vezes para fachos de luz que desciam por entre nuvens brancas e espessas iluminando montanhas geladas e solitárias e agora estou aqui, contando essa história.
 

segunda-feira, 30 de março de 2015

Escrevo e apago

Escrevo e apago. Escrevo e apago. Escrevo e apago. Reescrevo.
O grito chega na antesala da boca, a garganta, mas calo. Escrevo e apago. Escrevo e apago.
Perco a fome, fico com fome. Escrevo. Apago. Escrevo. Apago.
E sou feliz até a raiz dos cabelos, como se alguém espalmasse a mão na minha cabeça seguindo a curva do meu couro cabeludo e puxasse todos os fios pela base, exercendo uma pressão deliciosa.
Sou feliz, em meio à minha própria confusão e aos momentos de melancolia desesperada.

Chove uma tempestade cinza azulada lá fora. Faz frio. A natureza me acompanha.
Flores ressecadas circulam pelas calçadas em pequenos redemoinhos que me fazem lembrar da minha infância.
Sigo adjetivando o mundo e todo leitor atento me reconhece.

Lá fora um cortejo acabou de passar. Morre alguém e sou feliz. Sofro e sou feliz. E isso tem um quê de indecência.
Escrevo e apago. Escrevo em retalhos. Penso, penso, penso. Me repito e isso está claro.
Rezo. Escrevo e apago. Rezo de novo, sem fazer orações, sem formalidades, olhando as pessoas na rua.
Lavando a louça. Dirigindo. Tomando banho. Trabalhando.
Eu quero muito. Eu vou engolir o mundo! Transbordo. As pessoas percebem.
Elas percebem que eu amo tudo.
Elas me perguntam "Que olhar é esse?" ou então "Está tudo bem com você, Marina?".
E isso me faz sentir mais amor ainda.
A minha irritação, a minha raiva, a minha frustração, tudo isso me faz amar ainda mais profundamente.
O grito na antesala massageia a garganta.
O grito na antesala me torna consciente de que sou humana e vivo e, se quiser, eu grito!
Até mesmo quando sou injusta há na minha injustiça um desejo sincero de bondade. E por isso, melhoro.
Escrevo. Apago. Reeescrevo. Sou grata.


quinta-feira, 26 de março de 2015

A parte que te cabe neste latifúndio

João Cabral de Melo Neto escreveu Morte e vida severina, um dos meus livros favoritos de todos os tempos. Um trecho do poema a seguir foi musicado. A versão mais conhecida da música é a do Chico Buarque (eu não sabia disso até agora há pouco), mas continuo preferindo a única que conhecia, que é de Rolando Boldrin e Renato Teixeira. Segue o poema e, em seguida, a música:

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

—— é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

—— Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

—— é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

—— é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

—— é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.


—— Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.

—— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.

—— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.

—— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.

—— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.

—— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.

—— Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.

—— Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.

—— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.

—— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.

—— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.

—— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.


—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).

 —— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)

—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).

—— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).

—— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)

—— Desse chão és bem conhecido
 (te espera de recém-nascido).


—— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.

—— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.

—— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.

—— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.

—— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.

—— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.


—— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.

—— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.

—— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.

—— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

—— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.

—— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.

—— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha,

—— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.


—— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.

—— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.

—— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.

—— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.

—— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.

—— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme.


terça-feira, 24 de março de 2015

Paciente*

A paciente nova está sentada na sala de espera com a mãe. Passo por ela rapidamente e a cumprimento com um aceno de cabeça. Não sabe ainda que sou eu quem vai atendê-la: nunca me viu, somente nos falamos ao telefone. Pego um copo d'água na cozinha, passo novamente pela paciente, que me olha disfarçadamente. Jamile confere o relógio e se remexe na cadeira, entre ansiosa e tensa. Será que vai se levantar e ir embora a qualquer momento? Ou começará a falar sobre seus problemas de forma hesitante, como quem faz pela primeira vez algo que ainda não sabe como funciona, para logo em seguida entregar-se a uma fala compulsiva que se derrama, tamanha sua angústia?  Ainda não sei.

No consultório, aproveitando meus 5 minutos antes da consulta, repasso na cabeça a cor desbotada dos seus sapatos vermelhos de couro. A maquiagem dos olhos que está na moda e é amplamente utilizada pelas modelos que são retratadas em revistas adolescentes. As mãos finas e amareladas que esfregava uma na outra, terminando num gesto irrequieto de cutucar as cutículas com a unha do dedão.  Também tem a mãe.  Sei que é a mãe porque foi ela quem atendeu o telefone quando liguei. Me explicou que a filha vai mal, que chora o tempo todo, que se tranca no quarto com a  luz apagada e arranha a parede, que tenta agredí-la quando não consegue o que quer. Essa mãe estava sentada em posição oblíqua, corpo todo virado em direção à escadaria, como quem deseja evadir-se. Cheirava a perfume simples e de bom gosto que arrematava uma higiene constante e contumaz, passando a impressão de capricho, de todo o capricho que se aprende com uma avó de 80 anos que se esforça para manter certos cuidados em evidência. Nessa comunidade onde se pega água do rio que cheira a esgoto, a limpeza é um lábaro estrelado que faz sonhar. Cheirar bem é algo que só se consegue através de um esforço descomunal que envolve caminhar 5 km para conseguir água limpa no riacho da cidade vizinha. Estar limpa de água limpa da cidade vizinha é,  provavelmente, um cuidado do qual essa mãe rodeou à si e à filha para virem me ver. Além do cheiro de perfume, banho tomado e água limpa, há gel de cabelo. Há passador. Há um jeito desengonçado de sentar na poltrona,  como se essa poltrona pertencesse a outro mundo, muito diferente do seu. 

As 13:01 chamo Jamile e sua mãe. A jovem prefere entrar sozinha. Mãe e filha concordam.  Jamile é linda do alto de seus 19 anos recém feitos. A bolsa de colostomia é imperceptível e há qualquer coisa de beleza assustada nos seus traços. Sorriso irônico. Jamile não queria estar aqui, veio por insistência da mãe, essa mãe que, Jamile confirma, caminha todo dia 5 km para pegar água limpa, diz a ela que ela tem que trabalhar, chama a adolescente de "puta"  toda vez que usa uma blusa um pouco mais decotada. Jamile ama  a mãe e a mãe ama Jamile, o amor possível, sofrido, alegre e injusto que conseguiram construir ao longo desses 19 anos e 3 meses. 

Pois aconteceu assim, segundo me conta a paciente: que numa tarde quente "de fritar ovo no asfalto" ela tinha se "queimado" com o namorado por ciúmes de uma vizinha. O namorado, que deveria levá-la em casa na Vila Jasmim, não suportando os ciúmes e acusações da moça,  foi embora sozinho deixando-a a alguns quarteirões de casa. E Jamile pôs-se a caminhar. Passou ao lado do ferro velho, da boca, do campinho de futebol, da casa da dona Ana que faz sorvete de côco queimado e depois na ruela cheia de casinhas sujas. Caminhava por um trecho vazio e cheio de mato quando surgiu o bando. Eram 5 ou 6. Novos. Desconhecidos. Jamile juntou as peças e entendeu tudo. Gente de fora daquela idade só podia estar ali por um motivo. Não teve tempo de pensar. Foi arrastada pelos cabelos para dentro do matagal e lá ficou por 3 horas que pareceram 30 dias. Perdeu muitas coisas. O bando ganhou o ticket de entrada para outro bando ainda pior, que faz a "lei" e controla a Vila Jasmim. 

Ficou hospitalizada por 43 dias. Passou por 11 cirurgias, sendo a mais delicada a de intestino. Recebeu orientações sobre doenças sexualmente transmissíveis,  aprendeu com as enfermeiras a usar e higienizar a bolsa de colostomia, reaprendeu a andar. Não tomou medicamentos para evitar a gravidez pois é contra o aborto. Engravidou. Pouco antes de seu aniversário deu à luz um menino a quem deu nome de anjo e que lhe inspira sentimentos contraditórios. Conta que conversou com uma psicóloga quando estava grávida de 3 meses e teve de enfrentar as dúvidas da profissional que não acreditou que a violência tinha ocorrido, uma vez que Jamile havia tido um filho. "Filho é uma coisa boa, mas não cura tudo". 

Jamile me procura após muita insistência de sua mãe. Em 20 minutos chora mais do que chorou no último ano. Agradece profusamente por qualquer coisa que dou a ela: um lenço simples de papel, que na verdade é uma toalha de papel para enxugar as mãos;  um copo d'água; uma carteirinha de tamanho inadequado e mal impressa onde escrevo o dia de nosso próximo encontro. Pede desculpas pelos sons que emanam do seu abdômen devido à bolsa de colostomia. Pede orientações sobre creches, pois quer voltar a trabalhar e quer que seu bebê seja bem cuidado enquanto está longe dele. Explico que o bebê precisa ter 6 meses para ser aceito na instituição.  Ela me olha com olhos compridos, me desejando. Ela quer os meus cabelos, os meus carinhos, mais um copo d'água e talvez mais um milhão de lencinhos. E, não conseguindo me abraçar, mas querendo muito, inclina o corpo magro em minha direção e encosta a cabeça no meu ombro por uma fração de segundo. 

De volta à sala de espera, cumprimento sua mãe. Ela me chama de doutora. Todos me chamam de doutora e não me acostumo com isso... Pergunta se gosto de manga e, antes que eu responda, me dá 3 mangas maduras de presente, dizendo que são da casa de sua vizinha. Pergunta se a filha me incomodou muito. Agradece de novo e de novo. Me conta que é cozinheira mas que agora trabalha só meio período para ajudar Jamile a cuidar do neto. E assim tudo termina. Mãe e filha vão embora, nunca mais voltam, nunca mais as vejo. Os telefones não atendem. Visitas domiciliares só resultam em palmas das mãos vermelhas de tanto bater palmas e respostas evasivas de vizinhos e vizinhas. 10 dias depois da última tentativa de contato vejo na televisão uma notícia sobre um acidente de ônibus no interior e lá estão os três,  sendo levados ao hospital com os corpos ensanguentados. Morre a mãe.  Morre a filha. Vive ainda a criança com nome de anjo, que sequer tem idade para ser aceita na creche e que tomava banho na água limpa de 5 km de pés cansados com sabonete Dove comprado só pra ela.


*Este é um texto inteiramente ficcional. Não foi revisado, recusa e abusa de vírgulas, peca na concordância em alguns momentos. Aceito correções! 


segunda-feira, 23 de março de 2015

Meus pais: visões

Essas fotos são de uma exposição de algumas obras da coleção Ludwig que aconteceu no ano passado no CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil - de Belo Horizonte. Com o nome Visões,  traz uma seleção de obras de encher os olhos.

Esse foi um dia particularmente feliz que passei com meus pais. Vejo as fotos e morro de saudades!
  

Desabafo insone

3:30 da madrugada e estou eufórica. Morrendo de não morrer. Se eu fosse bipolar, nesse momento alguém estaria considerando seriamente a possibilidade de eu estar em plena crise maníaca e necessitando uma alteração na minha medicação. Se eu tivesse 15 anos meu pai viria à porta do meu quarto antes de se deitar e aconselharia, sabendo que a chance de eu seguir sua sugestão seria pequena: "Tenta não ir dormir muito tarde, filha!". Dentro de uma ou duas horas minha mãe bateria na porta do quarto pedindo para eu fazer menos barulho. E eu provavelmente estaria fazendo uma dessas coisas insólitas que sempre fiz de madrugada como colar uma coleção de centenas de postais nas paredes do meu quarto, serrar com uma faca de cozinha o encosto de uma cadeira velha que eu queria transformar numa mesinha de mosaicos, arrumar pela milésima vez os meus livros, reler meus livros de arte (vários ao mesmo tempo). 

Não sei de onde vem isso, mas sei que quando estou assim é bom sinal. Hoje fiz um monte de coisas aparentemente banais para a maior parte das pessoas, mas incomuns para mim. Vi, até o final, um tipo de filme que eu normalmente evitaria com todas as minhas forças. Escutei músicas completamente atípicas até as 3 da madrugada. Sonhei um sonho maluco. Agora estou considerando seriamente a idéia* de ir caminhar no Botânico às 6:00. Quem me conhece entende como isso é bizarro. 

Eu não sei explicar o que está acontecendo, mas estou tão alegre que chego a sentir angústia. E eu não tenho a mínima idéia* de onde surgiu TANTA energia. Não estou nem conseguindo escrever um texto decente, porque o fluxo de pensamento atropela as minhas sentenças e as imagens que surgem na minha cabeça são muito mais interessantes que palavras. O lirismo foi passear, ficou só o puro e simples desabafo. Enquanto isso todo mundo está dormindo nessa cidade que dorme cedo. Só escuto o barulho do motor da geladeira e das teclas que vou pressionando. Não sinto sono algum.

Olhei a programação cultural e não tem música de câmara em lugar nenhum até o fim do mês. Morro de sede. Se não pudesse ler meus livros, enlouqueceria. Tenho fomes variadas. Quero vazar, quero desaguar, quero furar esse recipiente com uma agulha e ver estourar. E depois, não vou limpar nada.



* Idéia que se preze tem acento. E jibóia, azaléia, paranóia.... odisséia!

domingo, 22 de março de 2015

Cláudio Bonanni

Nascido em 1960, esse pintor tem como tema preferido as paisagens mediterrâneas.  Capri, Positano e a costa Amalfitana foram intensamente retratadas em seus trabalhos.

Após passar quase 12 anos transcorridos em estado neurovegetativo após ser agredido com um martelo por um jovem ladrão, o artista falece em 30 de Dezembro de 2014 na companhia de sua esposa Marta Montagnoli, que sempre esteve ao seu lado e nunca deixou de acreditar na possibilidade de uma recuperação milagrosa.

Sinceramente, tudo a respeito de Bonanni e sua obra me toca: o tema escolhido,  a forma como morreu, o amor inabalável de sua esposa.




Cena do filme "Sob o sol da Toscana" com Positano ao fundo

sábado, 21 de março de 2015

The last time I and you

De Carla Marie Freed. Acabei de descobrir...

Cinque Terre e suas cores

Minhas paixões por Arquitetura, cores e pequenos achados se encontraram quando vi as fotos de Cinque Terre. Perto do mar da Ligúria, há cerca de 100 km ao sudeste de Gênova, existem cinco povoados (Monterosso, Vernazza, Corniglia, Manarola e Riomaggiore) que juntos compõe Cinque Terre, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

Clique sobre as fotos para ampliar.




quinta-feira, 19 de março de 2015

Sonhando com árvores

"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria, 
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem"
(Guimarães Rosa)


Em ebulição, sigo pela cidade dirigindo a esmo, ouvindo fados, pulando as faixas de que não gosto e que, não sei por qual motivo, gravei. A noite desce devagar, curitibana. Em Minas, onde a vida é mais franca, já estaria escuro há meia hora. 

Provo tudo sem tempero, para sentir o real sabor. 

As angústias desses dias são melhores que as de antigamente pois tenho certeza de que serei feliz, nem que seja na base da birra. Escolhi ser feliz e pronto, mesmo nas horas mais improváveis. E sou feliz assim, comigo mesma, meus livros, meu trabalho, minhas árvores preferidas. Eucaliptos. Pinheiros. Paineiras. Plátanos. Estou inteira. Por pouco, não faço fotossíntese. Sou toda gerúndio.

Existe uma liberdade estranha a me rondar... Ela me impele a buscar coisas belas. Uma flor me deixa feliz. Uma criança que corre também é minha filha. Alguma coisa que sofre se mistura ao meu choro e juntas nos aliviamos da dor do mundo. Uma trilha sonora sempre perfeita guia todos esses devaneios e as banalidades são elevadas ao status de acontecimentos fundadores. Até a tristeza me ilumina. O mundo é uma selva inóspita e eu sou uma planta que cresce mesmo quando falta água. Ultimamente estou fazendo as pazes com o medo: uma folha seca que rola na grama é mais importante.

O carro segue, vou a outra cidade. Em meios a engarrafamentos e saudades de coisas que ainda não conheço, tudo se abre em possibilidades. Outros motoristas buzinam, irritados. Cada pessoa em cada carro é um mundo inteiro e a psicóloga em mim pensa que isso é um milagre absurdo e doloroso.

Quem sofre muito, quem sente as coisas na carne e vê a vida através de uma lupa, logo aprende a se defender. Algumas defesas nos deixam inertes por muito tempo e paramos de ouvir fados. Amamos tanto a tudo e a todos que não percebemos que a banda já parou de tocar, todo mundo foi embora e ficamos sozinhos a admirar a solidão magnífica da casa de espetáculos. Como a gente vive para os detalhes, ficamos ali, longo tempo, achando arte em coisas como as borlas das cortinas antigas, a textura da madeira que reveste o palco, o desbotado de um estofado grená. Um dia nos levantamos e nunca mais voltamos. 

As pessoas mais intensas, são as mais desprotegidas. Esta é, de certa forma, uma sina à qual não se foge. Por isso, a gente faz uma barganha assim: se eu me entregar, apesar do medo, espero encontrar algo especial. Quaresmeira. Se eu suportar tanta intensidade, se eu continuar indo a exposições de arte, se continuar escrevendo, se continuar acreditando na vida e nas pessoas, se continuar dirigindo a esmo e ouvindo fados, se eu fizer a minha parte, espero receber em troca esse "algo" inefável e sem nome, esse invertebrado gasoso que fará tudo valer à pena. Ipê. Cerejeira. Somos ambiciosos e simples ao mesmo tempo. Jacarandá. Nossa proteção está em sabermos nos perder. Pau Brasil. E em conseguir encontrar forças onde outros só encontrariam fraquezas. Braúna. E pode ser que dê tudo errado. Isso faz parte de estar vivo. Imbúia. Pau Brasil. Baobá!


* Esse texto foi escrito num fôlego só, portanto não foi e nem será revisado. Me reservo o direito de não usar conectivos e de soar incoerente. 

domingo, 15 de março de 2015

João Cabral de Melo Neto

Além de ter escrito Morte e Vida Severina, um dos meus poemas dramáticos preferidos, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto deixou outras obras excelentes e uma das que mais me encantam é Os Três Mal-Amados. Neste poema se alternam os discursos de 3 homens: João,  Raimundo e Joaquim. Eu gosto da obra como é, mas amo os trechos do Joaquim mais do que os do João e Raimundo. Aqui seguem todos eles reunidos, formando um texto contínuo. 


Os Três Mal-Amados

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte

sábado, 14 de março de 2015

Indicação de livro infantil: Cantiga

Comprei o livro infantil Cantiga na Arlequim, uma livraria do Rio que tem um acervo pequeno porém muito interessante. Resisti a belos romances e a livros bem peculiares em prol dessa pequena obra de arte criada pelo artista, ilustrador e quadrinista francês Blexbolex (pois é, fiquei viajando nesse nome...). Com palavras soltas e pouquíssimo texto, o livro traz ilustrações maravilhosas que vão se acumulando e formam uma história. É preciso ter imaginação para preencher as lacunas e criar ligações entre as cenas, o que resulta em narrativas diferentes de acordo com cada leitor ou mesmo a cada leitura. 




Cordel recitado por Lirinha

Eu adoro cordel e adoro a banda Cordel do Fogo Encantado. Já vi dois shows deles e tive contato com o Lirinha (vocalista) quando ajudei na organização de uma das edições do projeto Criatividade e Pós-Modernidade na época da faculdade. Lirinha é uma biblioteca ambulante de cordel e citações maravilhosas pouco conhecidas. Nesse vídeo ele recita Chico Pedrosa e, no próximo, Zé da Luz.