sábado, 4 de abril de 2015

A Falência

Como um projétil, me feres. Com cuidado e atenção, me feres. Com desvelo, com apreço, com raiva, com requintes de carinho e discreta alegria altiva, me feres. Em cada olhar que ninguém viu, em cada beijo que ainda não beijei, em cada toque que não houve, há uma felicidade guardada, um desprezo reservado.
 
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Me lembro de quando fomos viajar de trem, da sua raiva mal disfarçada ao me ver feliz. O seu pequeno ódio imenso do meu jeito de me inclinar em direção à janela, de ajeitar os cabelos atrás da orelha, de estar alegre. Me elogiava e me depreciava ao mesmo tempo, entre divertido e irritado. Me dava um beijo enojado do meu jeito ingênuo de sorrir e abria a boca em dentes branquíssimos dizendo que eu era linda, acariciando meus cabelos.
 
Então, o casal jovem entrou em nossa cabine. Sentaram-se cheios de risinhos e pequenos gracejos que nos pareceram ridículos. Eu entendia tudo... Me faziam recordar aquela época em que você não segurava a minha mão nem dizia que me amava, mas me olhava com olhos compridos como os de um bicho de estimação, como se vivesse a se espreguiçar sentado em poltronas de trem, como se seu uniforme para a vida fosse uma bermuda de tecido leve e uma camiseta branca com cheiro de amaciante em dia de sol. Eu quis calar aquela mulher que cruzava as pernas arrematadas em uma sandália alaranjada. Eu quis assassinar aquele homem novo e suas roupas despretensiosas, aniquilando assim toda a sua bondade, a sua gentileza que soava à condescendência e pena, a sua própria existência. E foi por isso que te beijei um beijo infeliz e mau: estava tão melancólica que a minha própria tristeza me fazia ser cruel.
 
Triste e angustiada, tentei encontrar beleza na paisagem que se estendia para além da janela. Por milagre, encontrei ainda olhos para ver um facho de luz que descia por entre nuvens brancas e espessas iluminando as montanhas geladas e solitárias. Já era alguma coisa. Eu ainda tinha em mim um facho de luz que descia por entre nuvens brancas e espessas iluminando as montanhas geladas e solitárias...! Há quem não tenha sequer uma flor, um eclipse, um ballet, um beijo. Há quem tenha se tornado tão amargo a ponto de não olhar pela janela, de não desesperar-se mais diante de uma angústia extrema, de não ver uma beleza trágica no sofrimento. O pior desespero é àquele ao qual nos acostumamos, mesmo sem anestesia. Vemos a violência correr ao nosso encontro e a esperamos, obedientes.
 
- O que você tanto olha?, você me perguntou. - Aquelas montanhas iluminadas. - Ah, tá., respondeu com desdém e raiva da minha capacidade de ainda olhar montanhas e buscar sentido nas coisas. Abrindo uma garrafa de água mineral, me ofereceu um gole como quem não oferece nada. Bebi do líquido puro como quem engole um veneno. Guardou a garrafa na bolsa, porque sabia que isso me irritava. 
 
Ao chegarmos à cidadezinha charmosa do condado, fomos direto ao hotel. Entramos no quarto, tiramos nossas roupas, tomamos um banho e transamos. Em meio ao sexo, em um momento aleatório, você me deu um tapa. Eu pensei assim, eu pensei pra mim "Agora eu vou embora. Dessa vez eu vou!". Mas nunca fui. Tivemos dois filhos, trabalhamos, envelhecemos. Eu lavei roupas em máquina de lavar, fiz terrines para receber casais de amigos, aprendi a falar francês, fui madrinha de casamento da Clarice, levei os nossos carros para a revisão, participei de festas de fim de ano na empresa, tricotei gorros de lã que ninguém usou, montei álbuns de fotografia, olhei muitas vezes para fachos de luz que desciam por entre nuvens brancas e espessas iluminando montanhas geladas e solitárias e agora estou aqui, contando essa história.