quinta-feira, 14 de maio de 2015

Inspiração*

A inspiração não falha. A inspiração vem na hora errada por motivos mesquinhos, a inspiração reatroage doida e tonta, aos trancos e barrancos, querendo beijos, mãos espalmadas, solidões, tristezas, dores, textos e palavras. Maldição que acompanha, cantilena que cala e depois reinicia sem que com isso já não se contasse, é certa e pouco suave, machuca e danifica. Corta coisas macias que não são feitas para serem cortadas rindo alto e absurda das minhas pequenas fragilidades, minha humanidade incerta e tateante. A inspiração às vezes vem assim, solta e lúbrica, violenta, buscando o estupro dos meus 11 anos de que me esqueço com dificuldade, apontando sutilezas toscas que gostaria de esquecer, marcando um compasso tétrico que não anda e nem pára, me fazendo escrever textos impublicáveis que ficarão para sempre guardados em meus cadernos.

Tenho medos. Ela me coloca diante deles. Me faz esticar o braço de olhos fechados e já posso sentir na ponta dos dedos a textura do inseto, as pilosidades que me horrorizam. Sinto as patas que me sobem pelas pernas, sinto o nojo e a sujeira que já não sei se sou inseto ou se sou eu mesma. . . Quebro concordâncias. Morrem unanimidades. Ocasos imperfeitos ofuscam os meus olhos tingindo a cidade de um vermelho que traz em si toda a essência do sangue, órgãos destroçados, coisas escondidas, falências. E a merda consiste em continuar seguindo em frente. Porque a gente é legal e sempre segue em frente. Sessões e sessões de análise. Isolamentos desconhecidos irresolvíveis. Conhecer os meus próprios sintomas e pode falar de outras posições que não aquela antiga, tão objetificada. Serve para seguir vivendo. Serve para escrever estas linhas. Serve para a angústia da invasão dessas palavras. Pra vomitar alguma coisa que eu não sabia que eu tinha.

Um atrito incômodo, a inspiração. Me faz ler livros, deixar de ouvir música, sofrer miseravelmente, a inspiração. E viva-se com esse ruído sem enlouquecer, quem souber fazer melhor! Mandemos à puta que o pariu qualquer chance de equilíbrio certo, de proteção: sejamos francas! Tem gente que nasceu pra ser ferida aberta, por que não!? E de xingamento machista em xingamento machista a gente funda uma cultura inteira em que nossas estruturas diminutas e concentradas de prazer estarão sempre expostas nos sujeitando a pontadas dolorosas, convulsões de delícia e dor intensas, criações maravilhosas que nos submetem e nos causam dor. Vou escrever umas linhas tortas. Vou me envolver em poeira de estrelas. Deitar o corpo num travesseiro plano e firme e sentir o desmaio que vem chegando, que vai trazer a náusea e a enxaqueca já tão familiares. Não há esconderijo possível. Não há lugar seguro. Não se foge de quem se é.

A inspiração bate na porta, a inspiração bate na aorta, torta como um pastiche decaído. "Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino. Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã."**

*Esse é um texto ficcional
**Do poema O amor bate na aorta, de Carlos Drummond de Andrade.

3 comentários:

  1. De novo, a falência....nessa última semana passada toda vez que eu ligava a tv e eu ligo bastante lá estavam os filhos nos programas de entrevista ou de departamentos variados chorando e babando e elogiando suas mães por conta do bonito dia das mães que apontava no domingo. Comentei com minha ajudante semanal que eu estava achando aquilo muito enjoado e que seria mais interessante se entrevistassem alguém que dissesse por exemplo minha mãe é a pessoa mais detestável que conheço, ela me expulsou de casa qdo eu tinha tantos anos e qdo eu era criança sumia com meus bichos e cortava minhas roupas meus livros minhas coisas preferidas enquanto eu estava na escola usando a mesma tesoura com que picava meu cabelo sofrido. Cresci e fugi daquilo.
    A Madalena e eu ficamos rindo e imaginando o que mais se poderia falar dessa mãe megera.
    Outro dia eu ouvi que " a vida é viscosa, entre a náusea e o rosa a ostra fez a pérola" antes que esquecesse o dito eu anotei na minha caderneta de tricô. Naqueles dias, passando o sufoco de dormir de acompanhante no hospital de noite e ficar como zumbi pelos corredores de dia, entendi pra mim o significado do esforço, da náusea e da pérola. Essas coisas que escrevi não têm muita conexão com seu texto. Mas os livros que mexem comigo são os que me incomodam ou têm um humor especial, não são os bonitinhos. Acho que é assim, o desconforto gera uma mudança. Eu não tinha conceito da inspiração nesses termos, a gente imagina inspiração como se fosse uma coisa pura cristalina, iluminação.
    Inspire fundo e solte os braços . Bjos.

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  2. "Avida é viscosa, entre a náusea e o rosa a ostra fez a pérola" é uma frase maravilhosa e quem a escreveu pode se orgulhar de a ter concebido. Vai para o meu caderninho de citações, aquele antigo, de menina ainda, com uma capa ilustrada com desenhos, lembra dele?

    Eu entendo a conversa que você e Madalena tiveram... eu sempre tive essa curiosidade, sempre quis sair das conversas formais, da fórmula conhecida. Sempre quis saber como é a vida real das pessoas, a parte boa e a má. Mas isso aparece bem pouco, né? Ou se aparece é sempre como preto ou branco, isso ou aquilo... e na verdade a vida das pessoas pode ser coisas opostas que se contradizem ao mesmo tempo. Viver tem momentos de incoerência, eu acho.

    Eu entendo esse processo que você passou, mãe. E entendo a relação dele com essa frase. A inspiração é parecida, pode ser algo espetacular ou terrível, mas pra mim costuma ser uma experiência limite. Me pergunto qual é a formula secreta dos grandes romancistas que conseguem escrever todos os dias, um dia depois do outro. Vivem sempre à beira de um precipício emocional ou simplesmente conquistaram (ou sempre esperimentaram) uma inspiração mais tranquila e regular do que a minha? Eu não sei.

    Agora me resta aprender a soltar os braços. Talvez seja pra isso que eu nasci, pra aprender isso.

    Beijo grande!

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