terça-feira, 24 de março de 2015

Paciente*

A paciente nova está sentada na sala de espera com a mãe. Passo por ela rapidamente e a cumprimento com um aceno de cabeça. Não sabe ainda que sou eu quem vai atendê-la: nunca me viu, somente nos falamos ao telefone. Pego um copo d'água na cozinha, passo novamente pela paciente, que me olha disfarçadamente. Jamile confere o relógio e se remexe na cadeira, entre ansiosa e tensa. Será que vai se levantar e ir embora a qualquer momento? Ou começará a falar sobre seus problemas de forma hesitante, como quem faz pela primeira vez algo que ainda não sabe como funciona, para logo em seguida entregar-se a uma fala compulsiva que se derrama, tamanha sua angústia?  Ainda não sei.

No consultório, aproveitando meus 5 minutos antes da consulta, repasso na cabeça a cor desbotada dos seus sapatos vermelhos de couro. A maquiagem dos olhos que está na moda e é amplamente utilizada pelas modelos que são retratadas em revistas adolescentes. As mãos finas e amareladas que esfregava uma na outra, terminando num gesto irrequieto de cutucar as cutículas com a unha do dedão.  Também tem a mãe.  Sei que é a mãe porque foi ela quem atendeu o telefone quando liguei. Me explicou que a filha vai mal, que chora o tempo todo, que se tranca no quarto com a  luz apagada e arranha a parede, que tenta agredí-la quando não consegue o que quer. Essa mãe estava sentada em posição oblíqua, corpo todo virado em direção à escadaria, como quem deseja evadir-se. Cheirava a perfume simples e de bom gosto que arrematava uma higiene constante e contumaz, passando a impressão de capricho, de todo o capricho que se aprende com uma avó de 80 anos que se esforça para manter certos cuidados em evidência. Nessa comunidade onde se pega água do rio que cheira a esgoto, a limpeza é um lábaro estrelado que faz sonhar. Cheirar bem é algo que só se consegue através de um esforço descomunal que envolve caminhar 5 km para conseguir água limpa no riacho da cidade vizinha. Estar limpa de água limpa da cidade vizinha é,  provavelmente, um cuidado do qual essa mãe rodeou à si e à filha para virem me ver. Além do cheiro de perfume, banho tomado e água limpa, há gel de cabelo. Há passador. Há um jeito desengonçado de sentar na poltrona,  como se essa poltrona pertencesse a outro mundo, muito diferente do seu. 

As 13:01 chamo Jamile e sua mãe. A jovem prefere entrar sozinha. Mãe e filha concordam.  Jamile é linda do alto de seus 19 anos recém feitos. A bolsa de colostomia é imperceptível e há qualquer coisa de beleza assustada nos seus traços. Sorriso irônico. Jamile não queria estar aqui, veio por insistência da mãe, essa mãe que, Jamile confirma, caminha todo dia 5 km para pegar água limpa, diz a ela que ela tem que trabalhar, chama a adolescente de "puta"  toda vez que usa uma blusa um pouco mais decotada. Jamile ama  a mãe e a mãe ama Jamile, o amor possível, sofrido, alegre e injusto que conseguiram construir ao longo desses 19 anos e 3 meses. 

Pois aconteceu assim, segundo me conta a paciente: que numa tarde quente "de fritar ovo no asfalto" ela tinha se "queimado" com o namorado por ciúmes de uma vizinha. O namorado, que deveria levá-la em casa na Vila Jasmim, não suportando os ciúmes e acusações da moça,  foi embora sozinho deixando-a a alguns quarteirões de casa. E Jamile pôs-se a caminhar. Passou ao lado do ferro velho, da boca, do campinho de futebol, da casa da dona Ana que faz sorvete de côco queimado e depois na ruela cheia de casinhas sujas. Caminhava por um trecho vazio e cheio de mato quando surgiu o bando. Eram 5 ou 6. Novos. Desconhecidos. Jamile juntou as peças e entendeu tudo. Gente de fora daquela idade só podia estar ali por um motivo. Não teve tempo de pensar. Foi arrastada pelos cabelos para dentro do matagal e lá ficou por 3 horas que pareceram 30 dias. Perdeu muitas coisas. O bando ganhou o ticket de entrada para outro bando ainda pior, que faz a "lei" e controla a Vila Jasmim. 

Ficou hospitalizada por 43 dias. Passou por 11 cirurgias, sendo a mais delicada a de intestino. Recebeu orientações sobre doenças sexualmente transmissíveis,  aprendeu com as enfermeiras a usar e higienizar a bolsa de colostomia, reaprendeu a andar. Não tomou medicamentos para evitar a gravidez pois é contra o aborto. Engravidou. Pouco antes de seu aniversário deu à luz um menino a quem deu nome de anjo e que lhe inspira sentimentos contraditórios. Conta que conversou com uma psicóloga quando estava grávida de 3 meses e teve de enfrentar as dúvidas da profissional que não acreditou que a violência tinha ocorrido, uma vez que Jamile havia tido um filho. "Filho é uma coisa boa, mas não cura tudo". 

Jamile me procura após muita insistência de sua mãe. Em 20 minutos chora mais do que chorou no último ano. Agradece profusamente por qualquer coisa que dou a ela: um lenço simples de papel, que na verdade é uma toalha de papel para enxugar as mãos;  um copo d'água; uma carteirinha de tamanho inadequado e mal impressa onde escrevo o dia de nosso próximo encontro. Pede desculpas pelos sons que emanam do seu abdômen devido à bolsa de colostomia. Pede orientações sobre creches, pois quer voltar a trabalhar e quer que seu bebê seja bem cuidado enquanto está longe dele. Explico que o bebê precisa ter 6 meses para ser aceito na instituição.  Ela me olha com olhos compridos, me desejando. Ela quer os meus cabelos, os meus carinhos, mais um copo d'água e talvez mais um milhão de lencinhos. E, não conseguindo me abraçar, mas querendo muito, inclina o corpo magro em minha direção e encosta a cabeça no meu ombro por uma fração de segundo. 

De volta à sala de espera, cumprimento sua mãe. Ela me chama de doutora. Todos me chamam de doutora e não me acostumo com isso... Pergunta se gosto de manga e, antes que eu responda, me dá 3 mangas maduras de presente, dizendo que são da casa de sua vizinha. Pergunta se a filha me incomodou muito. Agradece de novo e de novo. Me conta que é cozinheira mas que agora trabalha só meio período para ajudar Jamile a cuidar do neto. E assim tudo termina. Mãe e filha vão embora, nunca mais voltam, nunca mais as vejo. Os telefones não atendem. Visitas domiciliares só resultam em palmas das mãos vermelhas de tanto bater palmas e respostas evasivas de vizinhos e vizinhas. 10 dias depois da última tentativa de contato vejo na televisão uma notícia sobre um acidente de ônibus no interior e lá estão os três,  sendo levados ao hospital com os corpos ensanguentados. Morre a mãe.  Morre a filha. Vive ainda a criança com nome de anjo, que sequer tem idade para ser aceita na creche e que tomava banho na água limpa de 5 km de pés cansados com sabonete Dove comprado só pra ela.


*Este é um texto inteiramente ficcional. Não foi revisado, recusa e abusa de vírgulas, peca na concordância em alguns momentos. Aceito correções! 


5 comentários:

  1. Marina, não há correções ou há esperança de que haja alguma grande mudança? acho que já está tudo mais ou menos corrigido , encaminhado dentro do possível ou na direção de ser correto nessa história. Fico feliz por ser ficcional embora sabendo que coisas e pessoas ruins acontecem todos os dias na vida de pessoas boas. Um beijo grande.

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  2. Algumas correções são impossíveis... A história é ficcional mas atendo uma diversidade grande de pacientes e tenho contato com casos e relatos muito dolorosos. Eu tenho o imenso privilégio de acompanhar essas pessoas em seu processo de lidar melhor com seus sofrimentos, dores, limitações. É como ver uma flor desabrochar... nada me comove tanto quanto poder participar desse processo e ver uma pessoa realizar senão todo, pelo menos uma boa parte do seu potencial.

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  3. O que me impressiona na personagem, além dos sofrimentos pelo qual ela passa, são coisas sutis: traços de coragem, dignidade, desejo de superar o acontecido, manter-se fiel às suas crenças mesmo quando ela geram consequências dolorosas, o bom relacionamento que mantém com a mãe, a resiliência absurda que me sugere um desespero tão grande a ponto de impulsioná-la para a frente, seu jeito afetivo, sua transparência. Adoroa Jamile. Também gosto muito da mãe, do seu desejo por manter viva uma determinada estética que ela valoriza, da sua força, do seu desejo de orientar a filha para que ela tenha uma vida bacana, dos seus defeitos compreensíveis aue me irritam muito mas que são decorrentes da ignorância que muitas vezes vem junto com uma vida de muita miséria e maus tratos, do próprio fato de, tendo crescido em situação tão pobre e com pouco acesso a tudo, ela ter se agarrado a alguns valores muito nobres. A criança representa esperança, o que é bastante clichê. E eu nunca atendi um paciente que não me inpirasse esperança. Nunca. E duvido que venha atender.

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  4. Foi por isso, Marina, pela esperança de as coisas se reajustarem tb depois da tragédia, que conclui que está tudo encaminhado....acredito no amor dessa família, dessas pessoas, dessa criança e projetei na minha imaginação uma pessoa, talvez da ambulância que socorreu, ou do hospital, ou algum passante, motorista que se apegaria logo á criança, se dedicasse a ela, eu acredito na continuidade amorosa de Jamile

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